Manifesto Retroativo

Atualizado em 11 de janeiro de 2024 por Caroline Speridião

Tópicos

Assim como eu, muitas pessoas e grupos na internet desenvolveram manifestos para imaginar como seria uma internet ideal. Desses, alguns manifestos de destaque são: Permacomputing Principles, Anti Software Software Club Manifesto, e o Internet Manifesto de sadgrl.online. Acredito que a melhor maneira de concluir essa série de textos é, como esses manifestos descobertos durante minha pesquisa, contribuir com um manifesto focado no web design, porém que inevitavelmente tangencia aspectos sociais e políticos, da mesma maneira que o design de maneira geral sempre acaba por tangenciar.


  1. Colaboratividade e diversidade

A presença em um espaço com outras pessoas não é suficiente para defini-lo como colaborativo. Colaboratividade na internet significa a possibilidade de construir, através de comunidades, uma web justa e ativa socialmente, que seja suficientemente forte para defender seus próprios direitos e interesses coletivos independentemente dos interesses de corporações ou governos. 

A web ideal precisa ser radicalmente diversa de todas as formas, por exemplo: gênero, raça, região geográfica, etnia. Não podemos permitir que poucas nações, com seus pretextos socioculturais e códigos morais, tenham domínio mundial sobre uma base de usuários. Criar uma web diversa é criar diversas webs, cada uma compreendendo e comemorando suas respectivas culturas através do design.

  1. Direito à mídia dependente de contexto

A liberdade de posicionar artefatos digitais livremente como usuário é algo que foi tornando-se cada vez mais raro em espaços de socialização na internet ao longo das décadas, estando fortemente presente na plataforma Geocities e na Web 1.0, um pouco menos presente em redes sociais Web 2.0 como o MySpace, e pouco ou nada presente em redes sociais contemporâneas como TikTok e Instagram.

A falta de espaço para contexto na internet atual é propiciada e incentivada pelas diversas restrições impostas aos usuários em redes sociais: limite de caracteres, proibição de links em posts e, finalmente, o incentivo a publicações curtas e rápidas que alimentam o algoritmo, cujo destino final é o esquecimento após serem, inevitavelmente, soterradas por mais postagens curtas.

A existência de imagens, mídia e textos que só façam sentido dentro de um layout ou contexto específico, como o exemplo de peeman.gif discutido por Olia Lialina em sua instalação artística “What did Peeman Pee On?”, é fundamental para a livre expressão de ideias e geração de discussões na web. O direito ao contexto é um direito à nuance e complexidade, a discussões longas, que demandam tempo e atenção. É também um direito a devaneios e derivas, a construir espaços online que sejam ‘pesadelos de SEO’ ou ‘pesadelos de UX convencional’. Nem tudo precisa ser facilmente absorvido e viralizável para que seja algo válido como artefato participante da cultura digital.

  1. Liberdade de layout ao usuário final

Fortemente ligada ao item anterior, a liberdade de layout é uma autonomia de usuário que, como o direito à mídia context-dependent, foi sendo esvaziada ao longo das transformações da web. O surgimento de templates e espaços progressivamente menores e mais limitados para a expressão dos usuários nas plataformas relegou a presença destes, na maioria dos casos, a linhas do tempo, biografias sem o direito a mídia ou hipertexto, e uma foto de perfil (que muitas vezes nem sequer pode ser um GIF animado). O conceito de cultivar um espaço próprio e personalizado na internet deve ser resgatado em uma internet democrática, funcionando tanto como ferramenta de expressão individual e coletiva como uma maneira de fortalecer o direito ao contexto, além de auxiliar no florescimento de designs marginais e inortodoxos, não limitados pelos dogmas do ‘bom design’. Liberdade de layout significa também o direito de comunicar ideias fora de templates e layouts prontos, desafiando o usuário a explorar e criar suas próprias experiências em vez de submeter-se a plataformas que possuem intenções questionáveis, muitas vezes não divulgadas com transparência ao usuário final.

  1. Design irrestrito ao devaneio

Assumir riscos não é uma das primeiras coisas que vem à mente ao utilizar uma rede social. O design de interação de tais plataformas prevê cenários pré-definidos, caminhos estreitos pelos quais o usuário deve percorrer: adicionar postagem, adicionar story, comentar, curtir postagem, seguir outro usuário, rolar o feed ad infinitum e, simultaneamente, ver muitos anúncios irritantes. Há pouco espaço para erro ou imprevisibilidade, o que diminui a barreira de entrada de usuários leigos e facilita a adoção de novos produtos digitais; no entanto, a assepsia de interface que a web mainstream proporciona esconde um mundo de possibilidades que poderiam tornar a internet um espaço mais divertido e até mais saudável.

Espaços virtuais que permitam desvios e riscos, possibilitando desfazer e refazer erros, podem proporcionar uma imensa variedade de experiências não-lineares, únicas para cada usuário. Experiências singulares e não lineares têm o potencial de incentivar inovações e experimentos com interfaces, estimulando novos modos de se vivenciar o espaço digital.

  1. Resistência à efemeridade programada

Um padrão comum em plataformas web e redes sociais é o tratamento da atenção humana como uma commodity escassa, um pilar focal da economia da atenção que influi direta e indiretamente no design de interfaces digitais. Uma das consequências da economia da atenção é a ênfase constante no conteúdo mais atual e mais engajante, desfavorecendo a pesquisa e investigação de conteúdos ‘antigos’. Alguns exemplos de escolhas de UX pautadas pela economia da atenção são: as constantes affordances de UX que instigam os usuários à postagem imediatista*, algoritmos que impulsionam perfis que postam com mais frequência e a dificuldade de encontrar postagens antigas ao utilizar os mecanismos de busca internos de redes sociais. 

Interface do Facebook com campo de texto incentivando o usuário a postar conteúdos sobre o agora.
*’No que você está pensando, Caroline?’. Fonte: Facebook. Captura de tela em 13 de novembro de 2023.

Resistência à efemeridade significa cultivar o acervo virtual e valorizar o conhecimento compartilhado independentemente de sua data de publicação. A efemeridade digital é programada, portanto, a missão do designer inclui refletir, discutir e questionar escolhas de design que replicam essas dinâmicas de apagamento do passado. Afinal, a quem interessa uma cultura de esquecimento construída a partir da economia da atenção? Se não nos lembrarmos do passado, não temos uma maneira de questionar o presente ou construir futuros historicamente conscientes.

  1. Web sob construção e o design com costuras expostas

Nos primórdios da Web 1.0, GIFs e imagens com a frase “Under Construction” sobre um fundo amarelo listrado eram muito usados pelos usuários para comunicar que seus sites pessoais eram um projeto em andamento. Mesmo quando o site parecia relativamente preenchido com conteúdo, o trabalho nunca estava finalizado para alguns, pois o site pessoal trata-se de um hobby de longo prazo. Atualmente ainda é possível observar cenários que utilizam do termo “Sob construção”; na sua maioria, sites de empresas sob manutenção. Já as grandes plataformas evitam exibir suas fundações: suas atualizações são sutis e o seamless design, ou ‘design sem costura’ em tradução livre, é um princípio amplamente difundido. Imperfeição e a ideia de estar sob construção são aspectos da web obscuros e indesejáveis para empresas que valem bilhões de dólares. É importante transmitir segurança, solidez e manter a barreira entre usuários e desenvolvedores tão forte quanto possível, de forma a agradar seus acionistas. No entanto, nós não somos uma companhia de bilhões; dessa maneira, devemos nos perguntar o que estamos escondendo.

Projetar de maneira seamful, ou com ‘costuras expostas’, expõe as brechas e a interminabilidade do processo de web design. Sua constante atualização significa que, inevitavelmente, a internet está eternamente sob construção. Admitir a infinidade do “Sob Construção” é assumir sua participação como internauta e compreender como as plataformas escondem suas costuras, sejam elas atualizações ou bugs, desconstruindo a ideia de que existam sistemas sólidos, completamente funcionais e totalmente imutáveis na internet. Assumir a eterna construção da Web também é sobre esperança: esperança de redefinições sistemáticas, espaços digitais interessantes, pluralidade, e de reconstrução sobre as ruínas de uma Web comoditizada e insatisfatória.


Intervenções

Ainda não há nada por aqui :/
Carol

Contribua para essa pesquisa